Recentemente assisti ao filme norte-americano, Simplesmente Amor (2003), que conta várias histórias cruzadas. O filme é uma comédia romântica com uma pitada de drama e nele uma das histórias me chamou especial atenção, a do casal Harry (Alan Rickman) e Karen (Emma Thompson).
Harry, um homem de meia idade, é chefe numa empresa e possui uma secretária jovem e muito bonita. A moça o assedia explicitamente, mas Harry não percebe ou não leva a sério as cantadas da moça. Tudo muda quando, na festa de final de ano da empresa, Karen enciumada o alerta para o assédio da moça. A partir desse momento Harry passa a observar a secretária com outros olhos. O desfecho da história é muito interessante. Ele me fez refletir a respeito do ciúme e me lembrou a sábia frase do dramaturgo Karl Kraus: O ciúme é um latido que atrai os ladrões.
Aparentemente o ciúme faz parte de quase todas as relações amorosas. Contudo, é impensável compreender o ciúme desvinculando-o da noção de posse. “Ele é o meu marido!”, “Mulher minha não faz esse tipo de coisa.”. Não é raro ouvir afirmações desse tipo vindas da boca das mais variadas pessoas. A sensação de posse não respeita gênero, cor, credo, idade ou classe social. A visão do outro como um objeto pessoal, ou seja, de uso exclusivo, é compreendida como algo normal em nossa sociedade. Espanta-me como essa atitude é aceita naturalmente, não apenas pelo “dono”, mas pelo “objeto”, afinal de contas “quem ama cuida”, certo?
O ciumento tenta controlar todos os aspectos da vida do ser amado. Nas palavras de Proust “O ciúme é muitas vezes uma inquieta necessidade de tirania aplicada às coisas do amor”. O ciumento quer saber onde a pessoa vai, com quem conversa, que roupa está usando, porque demorou a chegar em casa, porque não atendeu o telefone e até mesmo que cueca/calcinha a pessoa está usando. Nada escapa aos seus olhos.
Conheço pessoas que deveriam trabalhar na ABIN (Agência Brasileira de Inteligência) tamanha sua habilidade para espionagem. Elas descobrem a senha de e-mail dos companheiros, fazem vigília no facebook, interceptam mensagens e ligações, descobrem até emails que a pessoa nem lembravam que existiam. É fantástica a habilidade de investigação e vigilância dessas pessoas.
Sempre que pergunto o motivo de tamanha desconfiança existe uma lista interminável de justificativa. “Ele mantém contato com uma ex”, “Ela me traiu em mil novecentos e guaraná com rolha”, “Ele era muito mulherengo”, “Eu não confio nos amigos dela”. Enfim, para o ciumento tudo que ele faz tem uma razão inquestionável. Por outro lado, não são raras as histórias como a de Harry, onde a pessoa objeto de ciúmes só percebe que existe um outro disponível porque o parceiro demonstra isso a ela.
Seria inocência pensar que uma relação em que há ciúme é culpa exclusiva do ciumento. As relações são construídas e a dominação não surge de uma hora para a outra. Não é da noite para o dia que a mulher resolve querer determinar quem o parceiro irá contratar como secretária, tampouco o homem acordará de manhã querendo saber cada passo da companheira. Ainda no início da relação observa-se o ciume germinando. O rapaz não deixa a moça sair com a saia “x”, pois os homens irão olhar e... ela aceita. “Se ele tem ciume é porque me ama!”. A namorada começa a implicar porque o namorado passa perfume para ir trabalhar e... ele para de usar perfume. “Ah... mulher é assim mesmo, insegura.”.
A teia é tecida lentamente, a cada dia é um impedimento novo. “Namorado meu não viaja sozinho”, “Mulher minha não tem amigo homem”. Quando o casal se dá conta as amarras na relação tornou-se algo sufocante. Aparentemente não há vida fora do casamento/namoro, contudo, é insuportável viver dentro dele.
Se por um lado o ciume é naturalizado socialmente, por outro a sociedade não lida bem com relações baseadas na confiança e liberdade. As pessoas olham com um ar de estranhamento quando uma mulher casada viaja com as amigas ou quando um rapaz vai a um show sem a namorada. É engraçado ver o olhar de espanto das pessoas quando alguém pergunta “sua esposa deixa você fazer isso” e recebe como resposta algo do tipo “eu não preciso de pedir autorização para ela”.
O primeiro passo para aprender a lidar com esse sentimento é compreender que não existe posse sobre o ser amado. Ninguém é dono de ninguém. Se alguém está em um relacionamento com uma pessoa é por escolha dele e não há nada que mude esse fato. Relação de posse sobre outro ser humano chama-se escravidão e não amor.